Lagoa da Conceição - Florianópolis

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Maria esperança

Mais um ano chega ao fim. Maria quase não acredita o quão rápido o ano acabara. Com as mãos cheias de calo, unhas amareladas e sujas, a empregada doméstica não parecia se importar com sua aparência. Seu corpo já se habituara às fortes químicas de produtos de limpeza. Suas roupas cheiravam a água sanitária e suor impregnado. Mas o sorriso no rosto nunca lhe faltava. Maria das Dores da Silva, seu nome foi registrado no cartório aos 13 anos de idade. Tem dores no próprio nome. Sua vida era sofrida. Maria, a única que podia trabalhar, entre seus 7 irmãos. Ela sustentava aquele casebre de madeira, já apodrecendo, no topo do Morro do Mocotó. Lá viviam 9 pessoas amontoadas naquele pouco espaço. Sua mãe tinha uma doença rara no cérebro e vegetava em um sofá velho a 5 anos.
Não se importava em subir o morro íngreme com sacolas cheias de frutas maduras que catava no final da feira. E o sorriso no rosto lhe dava forças e esperança de dias melhores.  Maria tinha 20 anos, mas sua aparência envelhecida escondia a juventude que ela nunca teve. Este ano que passou Maria não teve se quer um dia de folga. Nos dias de semana trabalhava de empregada doméstica e nos finais de semana cuidava de sua mãe e de seus irmãos que ainda eram pequenos. A sonhadora Maria, sempre com sorriso no rosto, não esconde a vontade de um dia encontrar um amor verdadeiro, o príncipe encantado que lhe trará a felicidade eterna. A melhor hora do dia é quando se deita na cama, depois de um dia longo de trabalho, a viajar no mais profundo sonho, sua maior jóia rara. O privilégio de satisfazer-se com uma vida feliz dentro de seus pensamentos. Fecha os olhos com sorriso no rosto e dorme tranquila. Maria acorda para um novo começo. Um ano acaba de nascer. E a esperança aperta o peito de Maria, que chora calmamente um choro feliz. Um sonho realizado. Ao descer o morro encontrou João, sentando em frente a uma igreja, os olhos brilhavam avistando Maria, que acabara de perceber que o sorriso no rosto lhe trouxera seus sonhos de todas as noites. A realidade tão esperada. E amor brotou naquele primeiro dia do ano.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Grávida aos 21 na prisão

As mulheres vieram ao mundo para serem mães. Essa afirmação começou a fazer sentido para mim quando visitei o presídio feminino de Florianópolis. Eram 129 mulheres encarceradas. A grande maioria encontrava-se condenada ou em regime provisório, por tráfico de drogas. Cúmplices de seus maridos, propuseram-se a encarar a cadeia para livrar seus homens de mais um processo. Entraram na vida do tráfico com uma única intenção: sustentar sua família. Não é fácil pagar as contas com um salário mínimo.

Algumas mulheres foram presas por vender drogas para sustentar os próprios vícios. “Meu nome é Ana Cristina da Silva. Pode colocar meu nome todo. Ninguém vai saber que sou eu porque tem um monte com o mesmo nome por ai”, diz a moça. Era jovem, completou 21 anos há pouco. Carrega em seu ventre um menino, no 5º mês da gestação. Bonita, de cabelos escuros e longos, Ana Cristina é magra. Notei sua gravidez somente quando levantou para me cumprimentar. Ficou surpresa ao ver tanta gente visitando o presídio. Gente que ela não conhecia, mas sentiu-se feliz ao ver algo novo acontecer naquele pouco espaço entre muros de concreto altos e cercas elétricas.

São seis diferentes celas. Na galeria - como elas apelidam o lugar - ficam mulheres que ainda não foram julgadas. A maioria ficava no Maracanã - um lugar quente e pequeno para 36 mulheres condenadas. As alas do semi-aberto e a regalia vêm logo depois, integradas por mulheres com bom comportamento. Ana Cristina fica no berçário, com mais cinco mulheres e três bebês.

Quando pergunto sobre sua história de vida, Ana arranja um jeito de desviar a conversa. “Lá vem ela querer saber da minha família. Não tem outra coisa para perguntar? Queres me ver chorar, guria? ”, esquiva-se, com receio. Depois de muita insistência, relatou-me partes de sua vida.

Sim, sua família a abandonara no dia em que se mudou para o cárcere. Essa situação é muito comum nos presídios. Ninguém suporta o fato de passar por uma revista e abaixar as calças acima de um espelho. A única pessoa que aparece no dia de visita é seu marido. “Tenho um marido, sim. Ele vem me visitar todas as quintas-feiras”, conta. “Ele tem 28 anos. Não gosto de meninos novos porque eles são muito crianças”, afirma Ana. Seu marido e pai do bebê já tinha ido preso; talvez ele seja o maior motivo de ela estar ali. Ana Cristina largou sua família para morar com o sujeito. “Estamos juntos há três anos. Ele já passou por isso que eu tô passando, então não vai me abandonar”, conta com um ar de esperança.

Em uma família de oito filhos, Ana Cristina era a caçula entre sete mulheres e um homem. Seus pais eram humildes, não tinham condições de vida para dar um futuro grandioso aos seus filhos. Ana largou a escola na 5ª série do ensino fundamental, como a maioria das mulheres naquele presídio. Ela disse que foi por conta de um acidente que sua mãe sofrera naquela época. “Minha mãe foi atropelada por um ônibus. O pneu passou por cima da perna dela. Ela tem problemas com isso até hoje. Daí eu parei de estudar para ficar cuidando dela, e nunca mais voltei”, afirma.

Ana Cristina era uma criança levada. Se envolveu com drogas na adolescência. Não soube dizer a idade certa, não conseguia recordar, ou quem sabe, esta era uma forma de tentar esquecer o passado. “Como você veio parar aqui?”, perguntei. “Cai com 50 g de fumo. Mas isso já faz tempo. Foi em 2008. Era carnaval e eu queria vender uns baseadinhos para poder curtir tudo o que eu queria. Mas a policial me pegou com o fumo na bolsa. Fui julgada e presa só no dia 21 de julho deste ano (2010). Vou sair antes do natal, se Deus quiser”, promete, com uma voz mais baixa e uma postura convicta.

Ana não costumava se lembrar de quase nada. Mas o dia em que entrou na cadeia, ela não esquece. Já estava grávida de um mês quando recebeu o mandato de prisão. Não se sabe se a gravidez foi uma forma de conquistar um melhor espaço dentro do cárcere. Ela diz que não, pois tinha certeza que não iria ser presa. “Se eu tivesse um advogado bom eu não estaria aqui. Não estava com muita quantidade para ser presa. Fui condenada a um ano e 8 meses. Mas acredito que vou sair antes do natal”, disse mais uma vez com a cabeça erguida. Já tinha ido presa por quase um mês, em 2009, quando o processo estava em andamento. “Vim presa uma outra vez, quando a policia achou uma dinamite na gaveta do meu quarto. Mas aquilo ali não era meu. Era de um amigo que estava ficando na minha casa. Tanto que eu saí depois”, ela assegura. Ali pude confirmar que Ana Cristina não tinha condições de pagar por um bom advogado e não teve qualquer ajuda financeira. Pude perceber que talvez ela estaria acobertando seu companheiro.

Ela era muito simpática, contava suas versões sempre com sorriso no rosto, confiante de que iria sair dali o quanto antes. Apesar de estar presa, Ana não tinha reclamações a fazer sobre o presídio, disse que tudo estava tranquilo. Não parecia se importar com o lugar, ou tentava esquecer a situação em que se colocou. “Olha Luana, esquecer da rua é o melhor remédio. Procuro nem pensar no que esta acontecendo lá fora, se não enlouqueço. Meu dia a dia aqui é comer e dormir. Não faço mais nada não”, disse.

Depois de uma longa conversa, comecei a pensar na situação daquelas mães e grávidas que se encontravam presas com poucas condições de vida. Para onde vão os bebês depois do período de amamentação? Qual será o futuro dessas crianças, com mãe presa e família mal estruturada?

Uma lei está sendo tramitada desde 2007, um projeto de lei de autoria do deputado Pepe Vargas (PT-RS) que prevê a transferência das presas grávidas para um hospital quatro semanas antes do parto. A lei determina ainda que, ao retornar para o cárcere, a mãe e o recém-nascido sejam acomodados em uma cela especial para o período de amamentação, até os seis meses de idade. Na verdade, a presa grávida depende do consentimento do diretor do presídio para ir até uma unidade hospitalar. No presídio de Florianópolis, essa cela existe. No entanto, o lugar é pequeno para suportar seis mães e seus bebês, sendo que não há espaço para berços. Os bebês dormem na mesma cama que as mães.

Falar sobre a situação de presos no Brasil é um grande tabu, por se tratar de um país castigado pela tragédia da violência urbana e tráfico de drogas como é o Brasil. Essas mulheres são praticamente esquecidas entre tantos outros problemas que atormentam o país. São esquecidas por seus familiares, e pelo próprio governo que lhes dá pouca estrutura de vida dentro das celas. Ao mesmo tempo que mulheres ganham espaço no mercado de trabalho, o número de presas também dobra nos presídios do país.

Ao me despedir de Ana Cristina, um abraço forte senti. “Tu vais voltar aqui? Não vais esquecer das minhas fotos, né? Não vai esquecer, hein? Porque eu não vou esquecer!”, disse ela. Pude perceber a grande carência em que vivem aquelas mulheres. Elas imploram por uma atenção. Elas estão solitárias e viverão sozinhas até cumprirem sua pena. O que espero? Espero um futuro melhor para essas mulheres. Espero um ato de confiança, e a queda do preconceito. Afinal, estas mulheres precisam ter uma oportunidade de vida melhor para serem felizes e cuidar de seus filhos. Precisam estar em uma situação que faça valer a pena viver uma vida saudável, longe do mundo do crime.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O segredo oral

Ao lembrar a história escrita pelo autor Joseph Mitchell no livro O segredo de Joe Gould, é possível perceber que Mitchell, o então repórter da revista The New Yorker nos anos 40, realiza mais do que uma reportagem jornalística com seu entrevistado, Joe Gould. Não só pela forma como o autor descreve os fatos, mas pelo vínculo que foi estabelecido entre repórter e entrevistado. É como se Mitchell fizesse parte da vida daquele “homenzinho alegre e macilento”, como relata. Foi o único que sabia seu segredo; e o guardou por anos revelando-o somente sete anos após sua morte, da forma oral para a escrita, na segunda parte desta obra.
O livro contém duas partes, o primeiro texto “O Professor Gaivota” escrito em 1942 – apelido de Gould que dizia falar a língua das gaivotas - e o segundo texto intitulado como “O segredo de Joe Gould”. Por sua imponência, o livro até virou um filme, dirigido por Stanley Tucci, que levou o título, em português, de Crônicas de uma certa Nova York.

Joe Gould era a legítima figura de um boêmio que vivia nas ruas, e conhecido por realizar a “História Oral”, fragmentos de conversas de pessoas nas ruas de Nova Iorque, que ele dizia anotar, e que era oito vezes maior do que a Bíblia.

Estes dois motivos fizeram Mitchell aproximar-se de Joe: a curiosidade da vida em torno daquele homem de avô e pai médicos que escolheu levar uma vida anônima nas ruas, acolhendo piolhos e roupas esfarrapadas e a tão comentada "História Oral". Mitchell foi o primeiro jornalista a escrever reportagens como esta, que naquela época eram inexistentes a sociedade.

E quem nunca viu uma figura como esta, nas ruas de uma cidade? São esquecidos e despercebidos pela maioria dos cidadãos que têm pressa e hora marcada. Eles, do contrário, vivem uma vida sem seguir os ponteiros do relógio, sem planos.

Gould era uma figura destas. “Vivo de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e catchup", ele dizia. Vivia da boa vontade dos outros, com roupas doadas que chegavam a ser grandes em seu corpinho magro e enrugado, e enganava a fome com catchup. “Eu nem gosto muito desse troço, mas tenho o costume de comer tudo o que me aparece. Esse é o único grude grátis que eu conheço”, Gould disse em um dos encontros com Joseph Mitchell em um bar, para a entrevista.

Ao mesmo tempo em que queria transparecer um homem durão, Joe Gould era solitário e carente. Sempre à procura de pessoas como Mitchell; para desabafar a dor da falta de seu pai; e o rancor da rejeição que levou por toda a sua vida. Gould escreveu em seus vários cadernos - do tipo escolar – diferentes versões da morte de seu pai.

Isso prova a sua grande exigência ao escrever uma história, tamanha exigência que Gould não chegou a escrever a tal “História Oral”, deixando esta tarefa para o seu grande confidente, Mitchell. Talvez Gould tenha escolhido a dedo o seu grande discípulo, e por isso fez questão de encher os ouvidos do jornalista por dez anos, pois no fundo Joe Gould sabia que ele daria vida a sua história como ninguém. Uma história tão profunda que fez Joseph Michell não conseguir mais publicar coisa alguma. Preferiu calar-se, pois sabia que esta história estaria presente na vida das pessoas para sempre, como está até hoje.

Michell marcou história por ser um jornalista único, criativo e curioso, optando por seguir a vida de um indivíduo nato que vivia nas entranhas da tão popular cidade de Nova York, valorizando-o como uma peça fundamental da sociedade, em vez de vivenciar e escrever sobre a burguesia, como faziam os jornalistas da época.